terça-feira, 17 de setembro de 2013

Coletivo Água Branca - um processo
Hélio Schonmann (colaboração: Francisco Maringelli, Paulo Pt Barreto, Thiago Vaz, Lúcia Neto)


O espaço público chama o trabalho coletivo. Desse chamado nasceram projetos colaborativos no Parque da Água Branca, em 2009, que foram aos poucos migrando para outras áreas da cidade. O desafio era  - e continua sendo -  realizar uma interação profunda entre poéticas visuais muito diversas. Qual o limite  dessa interação, até onde pode chegar? Eis uma questão colocada pelo  Coletivo Água Branca.
Todos os artistas participantes de nosso processo desenvolvem uma obra pessoal, mas no espaço público decidiram atuar colaborativamente, interpenetrando imagens e linguagens - pintura, desenho, gravura, stencil. O formato lambe-lambe viabilizou muito dessa pesquisa, permitindo a realização de projetos que se adaptam tanto à rua quanto ao espaço expositivo formal:

"O lambe-lambe é uma imagem essencialmente nômade. Daí sua grande versatilidade e a desenvoltura com que transita entre espaço público e privado – característica que o coloca em posição singular e privilegiada, no contexto da reflexão artística contemporânea (...)O lambe-lambe vem se tornando, cada vez mais, um campo fértil à experimentação gráfica, abarcando xilogravura, stencil, desenho, fotografia, tipografia e imagem digital. O laboratório dessa experimentação pode ser pensado como uma continuidade entre atelier – ou computador – e cidade. Nisso ele se diferencia daquelas manifestações de arte de rua cuja elaboração se dá, exclusivamente, no corpo-a-corpo físico com a metrópole. O processo de elaboração do lambe-lambe tem outra natureza, inclusive por que ele é concebido para um campo pré-determinado e restrito – a folha de papel."
(Hélio Schonmann, texto de apresentação da intervenção Lambe-lambe, Parque da Fernando Costa/Água Branca, São Paulo, 2010)

Organização é item essencial ao trabalho coletivo. Coordenei os primeiros eventos que realizamos no parque e, logo a seguir, Lúcia Neto passou a dividir comigo esse papel. Em projetos específicos, outros vieram somar forças ao processo de coordenação - caso de Paulo Pt Barreto na intervenção VI[r]e]VER, no MuBE (Museu Brasileiro de Escultura), em São Paulo (2012), projeto no qual trabalhamos lado a lado com seis coletivos convidados, provenientes dos mais diferentes pontos da Grande São Paulo e cidades próximas. Esse e outros eventos trazem a marca característica de nossa trajetória: o impulso permanente por agregar e incluir.  Ao corpo fixo de participantes vem se somando dezenas de artistas.

"Penso a abertura para o coletivo como uma forma de elaborar, no plano artístico, questões essenciais ao momento em que vivemos: se os últimos séculos inflaram ao limite a percepção da individualidade e a subjetividade dela decorrente, a realidade atual vem exigindo, progressivamente, de todos nós, a revisão da relação individual/coletivo, à luz dos novos e crescentes desafios à própria sobrevivência da espécie humana. Nesse contexto, a busca pela interação artística coletiva me parece um caminho natural – reação à fragmentação, à deterioração e à violência de caráter autofágico que nossa cultura vem alimentando."
(Hélio Schonmann, texto de apresentação da intervenção ITINERANTES, Ponto de Cultura Periferia no Centro, Ação Educativa, São Paulo, 2010)

O sentido inclusivo de nosso trabalho envolve várias dimensões, desde a quebra de barreiras entre artistas "de rua" e "de atelier" até questões que poderíamos nomear como de "acessibilidade à expressão". Paulo Pt Barreto, um dos participantes do coletivo, ficou tetraplégico em um acidente em 1982 e atua como artista plástico desde 1988. 

"No  final dos anos 70, houve um movimento de arte de rua intenso. Tempo de ROTA nas ruas.
Eram  comuns desenhos acompanhados de legendas: é difícil;  te amei hoje uso agenda; Xô urubu! São três dos quais me lembro.
 Acompanhei algumas saídas noturnas apenas como expectador entusiasmado, tinha uns 17 anos e havia começado a desenhar há pouco tempo, não me sentia seguro para ‘’Pixar’’ paredes com o pessoal. Não sabia que a partir de 1982 não teria mais condições de manejar as latinhas de spray, dentre tantas outras coisas. De qualquer forma, o vírus da arte de rua já estava no meu sangue, agora faltavam meios para materializar meu trabalho.
Fiz varias experiências no sentido de alargar a escala de meus gestos. Em 1999 participei do Novelli Imagem com um helicóptero plotado em escala de outdoor, que foi distribuído em pontos da cidade,  sendo o mais notável o Centro Cultural Vergueiro, ao lado da Av. 23 de maio. Foi uma experiência inesquecível, muita gente viu, mas faltou o sabor de estar em ação na rua. Foi tudo feito por profissionais do outdoor, agora extintos. Era um lambe gigante!
Tive uma experiência muito interessante no ano 2000, quando fiz um painel de 7x2,9 metros com a ampliação ao modo dos outdoors, numa exposição no centro Universitário Maria Antônia. Ficou lindo, mas foi colado no espaço interno, juntamente com os outros trabalhos, não na rua como era meu desejo.
Desde 2009 tenho integrado as ações do Coletivo Água Branca em lugares públicos e finalmente na rua, desenhando, multiplicando, acompanhando e direcionando a colagem de meus lambes. NA RUA!
Foram marcantes as intervenções no parque da Água Branca, no MuBE e finalmente na Av. Ibirapuera, no muro defronte à lateral do Instituto Biológico (av. Conselheiro Rodrigues Alves) onde colo caminhonetes e motoboys em meio aos trabalhos dos meus companheiros.
Meu pedaço de muro em SP é algo modestíssimo dentro do universo da arte de rua de São Paulo, mas para mim é um inicio - e muito animador!"
(Paulo PT Barreto, depoimento, 2013)

Trazer artistas convidados que somem energia e inquietação ao trabalho coletivo: eis uma prática recorrente em nossa trajetória. Thiago Vaz é um deles - jovem que pesquisa e questiona incessantemente seus meios de expressão.

"Trabalhar com arte pública é uma experiência enriquecedora para um jovem grafiteiro - como foi para mim, colaborando com a Coletivo Água Branca. Porque sinto que o graffiti é limitado em relação à sua estética gráfica e imagética e muitas vezes só se comunica com o público do seu meio de atuação. A arte contemporânea, quando realizada no espaço público, não é diferente, se pensarmos no acesso que a totalidade da população terá a essa obra. Fica assim estabelecido o desafio de se trabalhar com arte na cidade, porque o espaço urbano é pra todos. Independentemente da localização geográfica, a obra deve oferecer possibilidades de leitura para um espectro muito grande de olhares, que compõe a enorme diversidade dessa 'natureza urbana'."
(Thiago Vaz, grafiteiro, depoimento, 2013)

Realizando intervenções nos mais diversos contextos da cidade - de paredes envidraçadas a tapumes, de passagens subterrâneas a edificações tombadas pelo patrimônio histórico - caminhamos em busca de interatividade com a população, objetivo materializado em VI(VER) A CIDADE, obra em processo que vem sendo elaborada em muro cedido pela empresa CPOS, numa avenida de acesso ao Parque do Ibirapuera. Nela as intervenções naturais dos passantes e a ação deletéria do tempo vão sendo incorporadas e retrabalhadas.
Já faz um ano e meio que  concentramos energias nesse muro, reelaborando as imagens, com foco voltado para uma relação orgânica entre arte e urbe. Apropriamo-nos das intervenções espontâneas (pixo, graffiti) que vão acontecendo no local - e seus autores se apropriam igualmente das nossas, numa relação simétrica e sinérgica.  Cada intervenção não apaga a imagem existente, mas aproveita a informação impressa no reboco. Assim vem se construindo um diálogo visual no espaço público. Diálogo essencialmente contemporâneo, que tem na cidade seu palco e suporte - diálogo que só pode acontecer em função de um espaço já conquistado, ao longo de tantas décadas, pelo movimento do graffiti. Depois dele, as grandes metrópoles nunca mais foram as mesmas.

"O reconhecimento cada vez maior que as intervenções visuais no espaço público vem recebendo, por parte dos mais variados segmentos sociais, pode ser creditado, em essência, à profunda necessidade que a população sente por estabelecer vínculos com a paisagem urbana de nossos grandes centros, superando seu aspecto impessoal e, tantas vezes, inóspito. A relativa liberdade de manifestação que os artistas da rua encontram em São Paulo – em comparação com outras grandes metrópoles do mundo – tem se revelado altamente fecunda, colaborando ativamente na construção de uma identidade paulistana que contemple nosso avesso do avesso do avesso do avesso(...)manifestações individuais e coletivas sobre o muro vão ganhando assim uma nova identidade: transformam-se em células de um tecido imagético vivo, que vai se espalhando pelo corpo da metrópole."
(Hélio Schonmann, texto de apresentação da intervenção ENTRE MEIOS, Passagem Literária da Consolação, São Paulo, 2010)

Que conteúdos visuais o Coletivo Água Branca se propõe a levar para o espaço público? Francisco Maringelli e Lúcia Neto definem facetas essenciais de nosso trabalho, em  formulações precisas.

"(...) fazer com que signos e figuras extraídos do contexto urbano sejam repensados, repropostos –  estratégia para que se reflita sobre organização espacial da urbe e a valoração de indivíduos e objetos no âmbito da cidade".
(Francisco Maringelli, depoimento, 2013)

"Trabalhar nos muros da cidade é uma experiência singular. O trabalho ganha proporções e espontaneidade muito particulares, quase impossíveis de serem reproduzidas numa tela. A possibilidade de compartilhar e interagir com grande número de passantes e artistas em ação traz conteúdos que transcendem o espaço público, influenciando realizações de ateliê - e vice-versa. O ateliê, laboratório de pesquisa - introspectivo, solitário - ganha gás. Processos de diferentes naturezas transformam-se e ganham novas perspectivas, tanto nas telas quanto em ações sobre muros.
No vidro, no teto, no muro a interação entre as obras sempre suscita um particular desafio. O  Coletivo Água Branca tem como proposta, ao intervir no espaço público, deixar sua marca não como conjunto de blocos de imagens de diferentes artistas e sim como construção interativa entre os artistas, um contínuo no qual cada um passa a ser uma célula, com seu DNA pessoal somado  ao de outros, dentro de um corpo complexo e articulado. O consenso se abre muito além do pintar/colar lada a lado - elaboramos interações entre, sob e sobre as imagens. Um trabalho cuidadoso que exige de todos um pensar mais acurado, meticuloso, para que, pouco a pouco, a ordem se estabeleça no caos e tudo se encaixe, cada um no seu espaço, em todos os espaços."
(Lúcia Neto, depoimento, 2013)


Artistas participantes do Coletivo Água Branca: Hélio Schonmann, Lúcia Neto, Paulo PT Barreto, Francisco Maringelli, Camilo Tomé, Pedro Maluf, Sérgio Kon, Altina Felício 

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